quinta-feira, 8 de abril de 2010

Aquecimento Global

Até cerca de cinqüenta anos atrás, havia uma crença, mais ou menos generalizada, rubricada pelo empirismo lógico, corrente epistemológica hegemônica na época, que a arena apropriada para avaliar a veracidade das teorias científicas nas ciências naturais era delimitada pelo chamado contexto da justificação. Vale dizer que tanto os critérios de verificação (Hempel) como os de falsificabilidade (Popper) envolviam operações essencialmente internas ao sistema da ciência.

Nesta ótica, a validação das teorias era um processo que não poderia sofrer nenhuma injunção social, política, econômica ou de qualquer outra natureza, fatores estes que se consideravam completamente irrelevantes na retificação ou ratificação dessas teorias. Estes e demais fatores pertenciam à jurisdição do contexto da descoberta, externo ao julgamento epistemológico das teorias científicas.

Essa situação se modificou após a aparição do texto de Kuhn no início da década de 60 e, mais tarde, com a evolução das disciplinas ligadas ao campo denominado de "Estudos Sociais da Ciência". Atualmente fala-se (ou se recusa a falar) na "guerra das ciências" , entre os "realistas" que ainda acreditam na objetividade e independência dos fenômenos estudados pelas ciências naturais e os "construtivistas" que acreditam na "construção" desses fenômenos, isto é, a noção que o conhecimento científico é uma criação humana realizada com os recursos materiais e culturais, e não a revelação de uma ordem natural e independente da ação humana. Entre estes dois limites se situam vários contextos epistemológicos, entre as quais o da Sociologia do Conhecimento Científico.

De qualquer modo, mesmo sem entrarmos nesta "guerra", pode-se observar que quando as observações, experimentos e teorias não são suficientes, ou são contraditórios, abre-se um vazio ou um espaço que é preenchido por fatores extra científicos para colocar um fechamento nos debates.

Isto significa que quando existe um dissenso ou incerteza entre os próprios cientistas num determinado setor, o espaço aberto pela subdeterminação das teorias propostas abre um campo fértil para a intromissão de fatores externos sejam eles políticos, econômicos, sociais ou mesmo éticos. Isto se torna tanto mais evidente quanto maior é o alcance e impacto econômico, social e político do campo de fenômenos estudados. A pergunta que importa fazer é então: "Como se tomam decisões que devem supostamente ser baseadas em conhecimento científico antes que haja um consenso científico?"

Ora, o exame de um fenômeno climático de alcance planetário e de enorme importância para as gerações futuras pode ilustrar o que foi dito acima.Trata-se do aquecimento global do planeta causado por um aumento dos gases chamados "de estufa", principalmente o C02, que bloqueiam a irradiação do calor de volta, da Terra, para o espaço. O aquecimento global é um fenômeno natural, mas cuja cota de exacerbação antropogênica (emissões de gases produtos de combustíveis fósseis, principalmente carvão e derivados de petróleo, de indústrias, refinarias, motores etc.) tem sido amplamente discutida. A previsibilidade e o grau do aquecimento global, inclusive as suas conseqüências, envolvem questões complexas sobre as quais os próprios especialistas ainda não formaram um consenso. Esta complexidade imbrica questões de ordem científica (previsões de mudanças climáticas), econômica (custos dos prejuízos e custos da prevenção destas mudanças) políticas (pressões de lobies interessados e conseqüências eleitorais das medidas econômicas propostas), éticas (deve a geração atual pagar a conta do aquecimento global para evitar suas conseqüências desastrosas para as gerações futuras?). Para analisar a problemática do aquecimento global realizaram-se várias conferências internacionais e um acordo foi proposto em 1997, o Protocolo de Quioto.

Em termos objetivos as projeções obtidas por modelos simulados pelos especialistas em comutadores prevêem um aumento de temperatura média no planeta entre 1.40° C e 5.8° C no final do século XXI. As conseqüências desastrosas deste aquecimento incluem, em geral, um clima mais quente e mais úmido com mais enchentes em algumas áreas e secas crônicas em outras. O aquecimento dos mares provocará um aumento do nível dos oceanos e conseqüente inundação de certas áreas litorâneas e a desaparição de certas geleiras. A umidade e o calor provocarão um aumento do número de insetos com o correlato aumento de algumas doenças por eles transmitidas, como a malária. É prevista uma redução das colheitas na maior parte das regiões tropicais e subtropicais onde a comida já é escassa. Como se isto não bastasse, haveria um decréscimo da água disponível e, por outro lado, maior risco de enchentes em determinados locais. Como resultado, as partes mais pobres do globo serão as mais vulneráveis pela sua escassa capacidade de Adaptação. Estas pelo menos são algumas das conclusões do Terceiro Relatório do IPCC.

O Protocolo de Quioto (1997) estipula que as emissões de poluentes causadores de aquecimento global deverão começar a ser reduzidas entre 2002 e 2012 em média 5.2% em relação aos níveis de 1990. Isto equivale a uma redução de 42% no nível atual de emissões. Foi também aprovado o chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, MDL, através do qual os países que precisam reduzir suas emissões podem comprar direitos dos países que têm créditos porque não emitiram o que teriam direito. Para entrar em vigor o protocolo precisa adquirir força legal, e para isto, precisa ser ratificado por pelo menos 55 países. É, porém, exigido que nesse grupo, estejam aquelas nações responsáveis por, no mínimo, 55% das emissões de gases. Como os Estados Unidos são responsáveis por cerca de mais de 30% das emissões, a sua omissão em ratificá-lo pode acarretar um bom atraso, uma vez que dos restantes 70% das emissões, países responsáveis por 55% precisariam ratificá-lo, isto é, praticamente a totalidade. Em verdade, praticamente, os Estados Unidos pouco precisam para dispor do poder de veto nesse protocolo.

A problemática do aquecimento global "aquece" também vivas polêmicas em torno de seus prováveis efeitos. Um pesquisador dinamarquês, Lomborg, escreveu uma obra com mais de mil páginas e milhares de notas em que faz uma análise dos dados ambientais. Suas conclusões contrariam as previsões usualmente mais pessimistas de seus colegas, inclusive do IPCC. O livro de Lomborg causou uma enxurrada de críticas, algumas dirigidas à sua própria competência. A polêmica no âmbito da pesquisa científica envolve também enorme interesse econômico (o Instituto Americano de Petróleo avalia o custo de cortar as emissões de gases de acordo com o Protocolo de Quioto entre 200 a 300 bilhões de dólares por ano), e conseqüente intervenção de potentes lobis econômicos ligados às indústrias poluidoras. O custo do corte das emissões, de outro lado, aumentaria o preço de determinados produtos e certamente influenciaria negativamente boa parte do eleitorado norte-americano. Em verdade as equações custo-benefício da aprovação do Protocolo de Quioto variam de país a país, mas é inevitável que a carga maior deve cair sobre o país que mais polui que são os Estados Unidos.

Voltamos aqui ao ponto inicial deste pequeno texto, isto é que o tempo da decisão política é muitas vezes mais escasso que o tempo da decisão científica a partir do consenso. No caso da problemática do aquecimento global isto ficou óbvio na decisão do presidente Bush, o ano passado, de não ratificar o protocolo de Quioto, e após 11 meses, propor um plano alternativo.

Malgrado a evidência científica a favor de providências imediatas para reduzir a emissão de poluentes tenha sido convincente para a maioria dos pesquisadores, algumas vozes influentes exprimiram o ponto de vista contrário. É possível que pesquisas futuras, com simulações climáticas feitas por computadores mais poderosos e a obtenção de dados mais precisos, possam contribuir para o "fechamento" da questão no registro científico. De algum modo, parece que o "tempo" científico desta questão ainda não maturou suficientemente.

Mas o "tempo" político do Presidente Bush e seus partidários "fecha" nas próximas eleições presidenciais onde os lobis financiando a campanha, e o eleitor norte-americano votando, decidem para quem vai o poder.

Aproveitando-se de uma possível indeterminação científica na problemática do aquecimento global e premido por circunstâncias econômicas e políticas o presidente da mais potente nação do planeta toma uma decisão que poderá favorecer a economia de seu país em curto prazo mas que, possivelmente, irá causar enorme prejuízo e sofrimento, em escala planetária, às futuras gerações.

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